Atividade sobre letramento visual em um livro didático do ensino fundamental no Brasil.
1. Introdução
Este trabalho tem como objetivo realizar a
análise de uma atividade voltada para o ensino do letramento visual presente em
um livro didático do ensino fundamental no Brasil. O livro escolhido foi o de
Língua Portuguesa, 9° ano do ensino fundamental II, das autoras Dileta Delmanto,
graduada em Letras – Português/Inglês, Mestra em Língua Portuguesa pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP) e Professora das redes pública e
particular de São Paulo e Laiz B. de Carvalho, graduada em Letras, mestra em
Literatura Brasileira pela Universidade Sagrado Coração (USC-Bauru/SP) e Professora
das redes pública e particular de São
Paulo.
A escolha do livro deveu-se por esse ser
relativamente recente, a primeira edição é de 2018, por ser facilmente
encontrado na Internet em formato PDF[1] e
por apresentar, já na unidade inicial, uma atividade voltada para o letramento
visual e quase integralmente pictórica, excetuando-se apenas o título da obra.
Na apresentação da atividade da Unidade 01,
Um conflito, uma história, as autoras explicam:
Esta seção de abertura da Unidade, que aparece em todas as unidades do volume, tem como objetivo desenvolver habilidades de leitura de linguagens não verbais e mistas, ativar conhecimentos prévios, ampliar referências culturais e despertar o interesse dos alunos para o trabalho que será desenvolvido ao longo da Unidade. Trabalhamos a formulação de hipóteses sobre o conteúdo da Unidade e a leitura de imagens (foto, pintura, grafite, fotograma, etc.) na exploração de recursos semióticos, como cor e intensidade, plano, ângulo, relação entre figura e fundo, entre outros. (DELMANTO; CARVALHO, 2018, p. 11).
O comando e a imagem da atividade escolhida são estes:
Diáspora, título da pintura que você vê nesta página,
significa dispersão de um povo ou de um grande número de pessoas que saíram,
não por vontade própria, do lugar em que viviam e foram para outros locais.
1. Que elementos você identifica nessa obra?
2. Observando a obra e considerando sua resposta à
atividade anterior, levante hipóteses: Por que o artista teria escolhido esse
título?
3. O artista afirma, em seu site, que sua obra é uma
homenagem a todas as mulheres que saem de seus lugares de origem em busca de
sobrevivência e melhores oportunidades para elas e seus filhos. Quais podem ser
as razões que levam a esse movimento (BARATA; KAZU, 2021, p. 11).
As respostas apresentadas, no manual do
professor, são:
1. Resposta pessoal. Possibilidade: Os alunos podem
identificar partes do corpo humano, como olhos, braços, mãos, rostos.
2. Resposta pessoal. Possibilidades: Os alunos podem
associar a disposição dos elementos da obra à ideia de dispersão ou
fragmentação.
3. Resposta pessoal. Possibilidades: Guerra; perseguição
política, religiosa; situação de miséria; violência; entre outras. (DELMANTO; CARVALHO, 2018, p. 11).
2.
Desenvolvimento
Sendo, esse tipo de atividade, o foco do
nosso trabalho passaremos, agora, a analisá-la. Primeiro, vamos esclarecer,
brevemente, o que as autoras querem apontar
com “recursos semióticos".
2.1
Semiótica
Para Décio Pignatari, em Semiótica e Literatura,
a semiótica seria justamente “uma ciência que ‘ajuda‘ a ler o mundo". Para
o autor, “A Semiótica ou Teoria Geral dos Signos é uma indagação sobre a
natureza dos signos e suas relações, entendendo-se por signo tudo aquilo que
represente ou substitua alguma coisa, em certa medida e para certos efeitos”.
(PIGNATARI, 2004, p. 21).
Santaella (2002) escolhe o que para ela
seria a definição de signo, segundo Pierce, mais didática:
Há uma enorme quantidade de definições de signo
distribuídas pelos textos de Peirce, umas mais detalhadas, outras mais
sintéticas. Dentre elas, escolhemos uma que, para os nossos propósitos, parece
exemplar: ‘Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é,
portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo
representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica
que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine naquela
mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a
causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a causa mediata é o objeto,
pode ser chamada o Interpretante’. (SANTAELLA, 2002, p. 35).
O signo é o próprio representâmen, está
representando alguma coisa, algum objeto para alguém, que ao decodificá-lo
produzirá sua imagem mental, ou seja, o interpretante.
As cores, texturas, composição e formas têm grande poder de
sugestão: uma cor lembra algo com a mesma cor; uma forma lembra algo que tem
uma forma semelhante, e assim por diante. São as sugestões que estimulam as
comparações. Na semiótica, ciência de todos os tipos de linguagem, essas
relações de comparação por semelhança são chamadas de ‘relações icônicas’
(SANTAELLA, 2012, p. 138).
Aqui, devemos salientar que uma obra de
arte, como a da atividade ora analisada, não tem como pré-requisito representar
o objeto de forma semelhante, porque
A semelhança da imagem não depende de uma comparação entre
a imagem e o original, mas é o próprio
movimento que gera a imagem como alteridade daquilo que é, a sua estranheza em
relação a si mesma, o seu duplo. (PONZIO,
2022, p. 44).
Isto posto, passemos para a fundamentação
teórica que embasará a análise da atividade. Apresentaremos, a seguir, o
entendimento de multiletramentos, do letramento visual e suas dimensões ou
instâncias.
2.2 Multiletramentos e letramento visual
O termo multiletramentos surgiu a partir das
discussões do Grupo de Nova Londres, doravante GNL (1996) sobre o futuro da pedagogia num contexto de
mudanças sociais e tecnológicas que impeliam o ensino-aprendizado a ampliar a
compreensão do letramento a fim de inserir toda uma multiplicidade de discursos.
[...] multiletramentos – palavra essa que escolhemos para
descrever dois aspectos importantes em relação à emergente ordem cultural,
institucional e global: a multiplicidade de canais de comunicação e de mídia, e
a crescente saliência da diversidade cultural e linguística. A noção de
multiletramentos complementa a pedagogia do letramento tradicional ao abordar
esses dois aspectos relacionados à multiplicidade textual. (GRUPO
NOVA LONDRES, 2021, p.106)
Gunther Kress, é um dos estudiosos do GNL
e coautor da Gramática do Desing Visual, Kress e Van Leeuwen (2006), com
trabalhos voltados para a “linguagem e aprendizagem, semiótica, alfabetização
visual e letramentos multimodais,” (GRUPO NOVA LONDRES,
2021, p.104). Segundo os autores, o texto não verbal deve ser aprendido e
ensinado, assim como o texto verbal, nas escolas.
Logo, as atividades de letramento visual,
em sala da aula, são necessárias para o desenvolvimento da habilidade de
leitura de imagens, principalmente, em um mundo cada vez mais imagético. Vejamos,
agora, uma definição pertinente e embasada sobre letramento visual.
É de fácil percepção que nos dias
atuais a imagem disputa espaços antes ocupados majoritariamente pelas
construções verbais de significado. Para Kress e Van Leeuwen (2006), as
estruturas visuais realizam significados, assim como as estruturas linguísticas
e, em consequência, destacam interpretações diferentes da experiência e
diferentes formas de interação. Fernandes e Almeida (2008, p. 11), por sua vez,
apontam que ‘as imagens produzem e reproduzem relações sociais, comunicam
fatos, divulgam eventos e interagem com seus leitores com a força semelhante à
de um texto formado por palavras’. As imagens podem ilustrar, argumentar,
narrar, complementar, etc. Dessa forma, os códigos não verbais são dotados de
real significado polissêmico. De acordo com Sturkene Cartwright (2001, p. 10), ‘uma
única imagem pode servir a múltiplos propósitos, aparecer em uma variedade de
situações e significar coisas diferentes para diferentes pessoas’ (CARVALHO ;
ARAGÃO, 2015, p. 14).
3. Análise
Segundo o modelo tridimensional proposto
por Green (1988, 1997), as dimensões do letramento são: operacional, cultural e crítica. Tais dimensões são interligadas,
sem hierarquia e unem linguagem, significado e contexto.
A dimensão operacional concentra-se no aspecto linguístico
da alfabetização. [...] A Dimensão Cultural envolve competência com o sistema
de significados de uma prática social; [...]
A dimensão crítica envolve a consciência de que todas as práticas
sociais, e, portanto, todos os letramentos, são socialmente construídos e
‘seletivos’: eles incluem algumas representações e classificações – valores,
propósitos, regras, dados e perspectivas – e exclui outros. (KRESS
; VAN LEEUWEN, 2006, p. 15, 16, tradução
nossa).
A atividade, aqui
analisada, contempla: a dimensão operacional ao solicitar que as questões sejam
respondidas em linguagem escrita, bem como a interpretação do título da obra.
A dimensão cultural é exigida
ao requerer que os alunos leiam a obra artística conforme a competência pictórica
dessa prática social e seus significados, devendo avaliar o contexto social,
historicamente situado, a que a pintura remete.
A dimensão crítica é explorada
quando a atividade pede que os alunos entendam a produção artística como um
posicionamento ideológico construído pelo artísta que, ao selecionar e excluir
determinados sígnos, posiciona-se socialmente com seu juízo de valor impregnado
na obra, incluindo o significado do título, que deve ser interpretado pelos
alunos.
Outras dimensões,
levantadas pelo GNL (1996) e que devem ser
avaliadas, são a produtiva e a criativa. A instância produtiva avalia a
habilidade do indivíduo de produzir conteúdo inserido num determinado tipo de
letramento. Nesse quesito, a atividade falha em não solicitar uma produção imagética
dos alunos, que participam apenas como expectadores/avaliadores da obra de
arte. A instância criativa refere-se a um
[…] tipo de inteligência criativa
que os melhores profissionais precisam ter para serem capazes de,
continuamente, redesenhar suas atividades no próprio ato da prática. Isso se
conecta, também, com a ideia de que aprendizagem e produtividade são resultado
dos designs (das estruturas) de complexos sistemas de pessoas, ambientes,
tecnologia, crenças e textos. (GRUPO NOVA LONDRES, 2021, p.119, 120)
Como a atividade não
solicita a produção, a instância criativa não existe nesse aspecto, somente
podendo ser avaliada a partir das respostas individuais dos alunos.
4. Conclusão
Concluímos que a
atividade solicita a tríade das dimensões do letramento, anteriormente
mencionada, porém, falha ao não incorporar as instâncias produtiva e a criativa.
Sabemos que o livro
didático é de língua portuguesa, não abarcando a produção artística, mais afim
com a matéria de artes comumente ofertada no fundamental I e não no fundamental
II, nosso recorte temporal. Logo, essas, provavelmente, são as razões da não
inclusão das instâncias produtiva e
criativa. A instância criativa está estreitamente ligada à produtiva, aquela
é a inovação, a inventividade ao produzir atividades, por consequência, não consta
na questão aqui analisada, também pelos prováveis motivos expostos.
Dessa forma, avaliamos
que a atividade é pertinente ao desenvolvimento das habilidades de letramento
visual, no que diz respeito à capacidade de leitura e interpretação de imagens,
mas poderia incentivar a produção artística criativa dos alunos, mesmo não
sendo uma matéria voltada para as artes.
Referências
Bibliográficas:
CARVALHO,
S. A. ; ARAGAO, C. O. . OS CAMINHOS DO LETRAMENTO VISUAL: UMA ANÁLISE DE
MATERIAL DIDÁTICO VIRTUAL. Revista de Estudos Anglo-Americanos , v. 44, p.
9-34, 2015.
DELMANTO, D.; CARVALHO, L. B. de. Português:
conexão e uso, 9º ano. Manual do Professor. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
GRUPO NOVA LONDRES. Uma Pedagogia dos Multiletramentos:
Projetando Futuros Sociais. Tradução de Deise Nancy de Morais, Gabriela
Claudino Grande, Rafaela Salemme Bolsarin Biazotti, Roziane Keila Grando.
Revista Linguagem em Foco, v.13, n.2, 2021. p. 101-145. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/linguagememfoco/article/view/5578
Acesso em 10 set. 2022
KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual
design. 2 ed. London: Routledge, 2006.
PIGNATARI, D. Semiótica e
Literatura. São Paulo: Ed. Ateliê Editorial, 2004.
PONZIO, L. Visões do texto. São
Carlos: Pedro & João, 2022, 281p.
SANTAELLA, L. O que é semiótica.
Ed. Brasiliense, 2002.
SANTAELLA, L. Leitura de imagens.
São Paulo: Ed. Melhoramentos, 2012.
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